O homem ao final do corredor

Luiz Alves
4 min readJan 4, 2021

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Rafael se levantara de sobressalto. Olhou para o lado da cama que apontava a janela, e viu o céu em sua tonalidade mais escura, aquela que precede o momento do amanhecer. Em uma noite quente de verão, podia ver as estrelas com clareza, apesar de nunca ter sido capaz de memorizar os nomes de constelações, ou mesmo suas formas.

Levantou-se ainda cambaleante em direção à sala, mas não sabia ao certo o porquê. Talvez fosse somente uma daquelas mijadas necessárias em meio à madrugada, um sonho com torneira, riacho, mar ou coisa que valha teria estimulado seu corpo a se livrar das doses perdidas de rum que tomara naquela noite. As caminhadas noturnas rumo ao banheiro possuem sempre um ar sombrio, pois nossos sentidos não dominam tão bem o ambiente, mas, ao mesmo tempo, as memórias musculares e motoras parecem nos guiar de maneira quase inconsciente.

No caminho até o banheiro, porém, teve um segundo sobressalto; este mais grave. A porta de casa estava aberta. Não encostada, ou entreaberta; aberta, em perpendicular ao seu próprio eixo. A porta do apartamento da frente estava lá, em todo seu estilo chapado branco sem graça que ele sempre ignorou desde a mudança para aquele endereço. “Porra, esqueci de girar a chave e essa porcaria escapou do ferrolho”. Em passos mais determinados e, forçosamente, mais consciente do ambiente ao seu redor, dirigiu-se à porta para fechá-la, ignorando o instinto primal que o fizera levantar da cama segundo antes.

Enquanto executava o clássico giro incomodado de quem fecha uma porta que não deveria estar aberta, Rafael escutou uma batida vindo do lado de fora do apartamento. O som se assemelhava a um cabo de vassoura golpeando o chão com força; ressoara uma vez e rompeu o silêncio da madrugada de forma assustadora. Com o coração acelerado, parou à porta, sem completar o arco para fechamento do apartamento. Poderia ignorar o som, lacrar sua morada, mijar como mandava a necessidade, e retornar à sua cama para concluir uma noite de sono.

“E se eu não tiver esquecido a porta aberta? Será que alguém entrou aqui?”

Movido por esse pensamento, moveu-se cautelosamente para fora do apartamento, pondo a cabeça no corredor e observando seu lado direito. A luz ao final cintilava, como se a lâmpada estivesse próxima do fim de sua vida útil. Outra batida forte veio, do outro lado do corredor. No susto, saiu de vez do apartamento e mirou o lado esquerdo, procurando a origem do som.

A batida se repetiu, mais forte, mais rápida, mais próxima, quase ritmada. Espremeu os olhos recém-despertos para o final distante do outro lado do corredor. As luzes cintilavam quase em uma dança, mostrando apenas partes de algo ao final do andar do prédio. Um vulto, ou trechos de uma sombra. Algo que se movia entre as oscilações iluminadas das lâmpadas velhas do prédio.

Olhar espremido, olhar mais aberto, olhar desperto. Era um homem que emergia daquela sombra.

“Silhueta de homem de negócios caminhando ao longo do corredor em direção à luz”. AgencySmile

A expressão de Rafael rapidamente se transformou. Pânico. Não susto, não medo, não espanto; pânico. Um vento forte que vinha da rua bateu a porta. Ao tentar abrir, deu com ela trancada, ou emperrada, ou talvez fosse somente o nervosismo que o fazia esquecer como abrir uma porta.

Virou-se novamente, enquanto tentava, a todo custo, abrir a porta. O homem caminhava em sua direção, uma expressão determinada e passos objetivos.

“Homem andando no túnel”, autoria não identificada

Mirava aquela pessoa à entrada de um apartamento no outro lado do corredor, em pânico, tentando abrir uma porta que parecia ter se tornado parede. À metade do percurso, o homem do outro lado do corredor começou a correr. Seus olhos penetraram a mente de Rafael e transformaram o pânico em inércia, em paralisia.

Algo resplandecia em sua mão direita. Uma lâmina.

Paralisado, Rafael sentiu o coração bater mais forte, o pulsar do peito tomar conta do corredor, viu as luzes gradativamente apagarem; a cada passo daquele homem, as lâmpadas chegavam ao final de sua vida. As batidas aumentavam de ritmo e volume atrás dele.

Poucos passos restavam. As lâmpadas queimavam agora em alto e bom som, e as pulsações cardíacas lembravam o partir de vidros, o romper das paredes, o quebrar de cabos no chão. O homem se aproximava; podia ouvir sua respiração, sentir seu hálito quente, ver sua mão fechando com força sobre o cabo da faca.

Antes do homem chegar, as luzes se apagaram à sua frente.

Parado, sem mais conseguir pensar no que acontecia, Rafael olhava para frente. Sentia uma luz ainda cintilando atrás de si, mas não sentia mais o hálito, não ouvia o respirar, não via o olhar. Erguendo-se vacilante, pôs a mão na maçaneta.

Conseguiu abrir a porta.

Ao mirar o olhar para dentro de casa, lá estava ele.

Imagem: pxhere.com (Autoria não identificada)

A lâmina deslizou de forma quase imperceptível pela garganta. Sentiu o líquido quente fluir por seu corpo. Gorgolejou.

Levantou-se, assustado. Tossiu por alguns segundos, segurando o pescoço. Olhou para o lado da cama que apontava a janela, era manhã. As estrelas já haviam abandonado o céu, e o sol começava a se mostrar, ainda tímido.

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Luiz Alves

Historiador, leitor de literatura fantástica, de horror e de crime. Escritor ocasional de coisas variadas.